Por Tião Rocha* . Foto Danilo Verpa
Criança Urbana e Criança Rural
Diferenciar “urbano” do “rural” nos tempos atuais é fazer mágica. E, no Brasil, é quase impossível:
– praticamente, não temos mais vilas e lugarejos, todas e todos se transformaram em cidades, mesmo não sendo “urbanizadas” no sentido mais amplo deste termo. Mais de 95% das cidades brasileiras (e são mais de 5 mil) têm uma população inferior a 50 mil habitantes;
– mais de 97% das crianças (entre 7 e 14 anos) está matriculada em escolas. E que escolas são estas? Urbanizadas pelo conteúdo, pelas pedagogias adotadas, pelos livros didáticos utilizados, pelas expectativas que criam e pelo mundo que anunciam!;
– mais de 90 % das casas brasileiras tem uma TV. E que TV é esta ? Urbanizada na programação, nas propagandas, na formação de opinião, na propagação de modismos, linguagens e comportamento social!;
– em quase 100% das casas brasileiras se escuta rádio. E que rádio é este? Urbanizado nas notícias, opiniões, músicas e comportamentos!
Enfim, falar de sociedade rural e sociedade urbana no Brasil é praticamente impossível. Mesmo em lugares ditos como eminentemente agrícolas, distantes dos centros urbanos, há forte presença da cultura urbana que, de maneira geral, é “branca, capitalista, cristã, “norteamericanizada”, individualista, mercadológica e excludente”.– Onde acaba a cultura urbana e começa a cultura rural num mundo globalizado e dominado por tendências, modismos e formadores de opinião que ultrapassam fronteiras e se impõe como produto de consumo, descartável e mutável?
As conexões – sites, TIs e Bits – universalizam as relações, uniformizam pessoas, achatam o mundo…”o mundo é plano”, afirma Thomas Friedman em seu livro “O Mundo é Plano: uma breve história do século XXI”, Editora Objetiva, 2006.
O lavrador Antônio Cícero, do sul de Minas Gerais, quando se referia à escola rural, dizia “a sua escola (a da cidade) é sua, ela tem a sua cara e explica o mundo do seu jeito. Agora, a escola (da roça) também é sua, ela não tem mais a nossa cara e não explica o mundo do jeito da gente da roça…e ela não nos faz melhor”.
É triste ouvir isto, mas é verdade. A escola, qualquer escola, não importa onde está localizada nem de onde vêm e como vivem seus alunos, ela tem sempre a mesma estética, função e cultura urbanizadas, isto é, o mesmo currículo padrão (muitíssimas vezes fossilizado), o mesmo material didático e os professores têm a mesma formação pedagógica. A diferença entre estas escolas (se é que existem ainda) só se dá na maior distância e no tempo de acesso aos meios urbanos pela escola rural em relação ao imediatismo das escolas urbanas.
As mídias – novas e velhas – estão localizadas nas metrópoles e nas cidades e não nas áreas rurais e roças. As modas, os novos hábitos e costumes são produzidos nos grandes centros urbanos e consumidos aí, imediatamente. Na zona rural demoram um pouco mais a chegar, mas chegam e urbanizam o rural.
É uma questão de tempo. A idéia de urbanização das idéias, dos valores e dos comportamentos chega ao mundo rural com um “atraso” (será atraso ou retrocesso?) de horas e dias, mas chega, se implanta e, em geral, subjuga o que havia, muda a visão rural da vida!
“…Na cidade do futuro, que já é do presente, as telecrianças, vigiadas por babás eletrônicas, contemplarão a rua, de alguma janela de suas telecasas – a rua, em que é apresentado o sempre perigoso e, por vezes, prodigioso, espetáculo da vida”, afirma Eduardo Galeano no seu livro “De cabeça para baixo: a escola de um mundo às avessas”, Sperling & Kupfer, Milão, 1999.
As crianças – urbanas ou rurais – de hoje, são treinadas ou pior, são domesticadas, desde pequeninas, para se comportam dentro de “fôrmas”, convenções e limites rígidos e pré-estabelecidos:
– têm lugar e hora para brincar, lugar e hora para estudar, lugar e hora para falar, lugar e hora para ficar calada, hora e lugar para se comportar…tem lugar e hora para tudo, no ritmo da vida urbana e industrial…só não têm lugar e hora para ser feliz! E esta é, provavelmente, a maior violência que se comete contras as crianças pequenas!
Francesco Tonucci nos brinda com verdadeiras pérolas extraídas do pensamento e da opinião das crianças pequenas, apresentadas nos seus livros: (“Com os olhos de criança” e “Quando as crianças dizem: agora chega!” e ambas da Editora Artmed, 2003 e 2005, respectivamente):
– diz uma criança de Fano, Itália: …”eu estava brincando no parque e o guarda tirou minha bola”;
– em outro depoimento, afirma uma criança de Nápoles: ….”as crianças devem brincar onde é possível brincar…e não onde se deve brincar”;
– e as crianças de Reggio Emilia, escreveram ao Prefeito: …”Sr. Prefeito, nós não queremos escorregadores e balanços, queremos a cidade”.
No dia que as cidades forem das crianças de fato, com certeza, a violência urbana, seja doméstica ou escolar, a violência do trânsito, não serão mais assunto dos telejornais diários!
E conclui com outras pérolas:
…”para brincar, as crianças deveriam ter o mesmo espaço que os adultos têm para estacionar os automóveis”, (dizem as crianças de vários países europeus).
Talvez esta seja a maneira mais enfática de demarcar os espaços e os valores que violentam a primeira infância, esta fase (até os 6 anos) fundamental e necessária para a formação de nossa identidade e personalidade.
E nos oferece como uma síntese: …“não é mais suficiente oferecer serviços às crianças, é preciso devolver-lhes as cidades”, afirma Romano Prodi, presidente da Comissão Européia.
A escola debaixo do Pé de Manga
Quando nos perguntamos, em 1984, se era possível construir uma escola debaixo de um pé de manga, não nos importava se este pé de manga estaria na cidade ou no campo. (Desculpem a ironia, mas hoje, provavelmente, esta pergunta seria essencialmente rural, porque na maioria das cidades não existem nem mais árvores, quanto mais pés de manga…)
Só nos importava saber como as crianças pequenas podem aprender o que precisam aprender para serem…livres, felizes, educadas e terem saúde! Naquela época aprendemos que escola e educação são coisas diferentes. Escola é meio. Educação é fim! Assim como a Liberdade, a Felicidade e a Saúde! E nós sonhávamos ( e ainda sonhamos) com o fim, não os meios!
Nesta mesma época difundia-se um novo conceito que achatou mais o mundo: o grande consenso em torno do IDH – Índice de Desenvolvimento Humano (ONU, 1990). A partir de então, cidades e vilas, rurais ou urbanas, países ricos e pobres, todos, sem exceção, passaram a ser medidos pelas variáveis (taxa de alfabetização/taxa de escolarização, renda/PIB per capita, expectativa de vida/longevidade). O IDH passou a ser determinante na formulação de políticas públicas em todos os níveis.
“O uso do cachimbo põe a boca torta” , diz o ditado popular. O olhar através do IDH viciou os olhares. Passou-se a olhar apenas para “o lado vazio do copo”, as carências, as misérias, as pobrezas. E esqueceu-se de olhar – também – para o “lado cheio do copo”, onde estão os recursos humanos, as fortalezas culturais, as práticas solidárias e humanizantes.
Se o mundo plano passou a usar um mesmo indicador de planejamento, nivelou-se, por baixo, o jeito de pensar e intervir na realidade.
E apesar de todos os alertas da psicologia parece que não importa onde vivam as crianças e o que elas precisam para formar sua identidade e singularidade, pois o mundo plano as quer uniformes, padronizadas e pluralizadas.
Neste mundo, o que vale, tem como padrão e manequim a vida nas metrópoles e nas grandes cidades. Mesmo que a maioria das cidades continuem pequenas e provincianas, a mentalidade, o jeito de produzir a vida e vivê-la segue o manequim metropolitano. As crianças pequenas do interior de Minas Gerais continuarão a ser transformadas e tratadas como cópias – mal feitas – das “barbies”. Cópias esteriotipadas do um mundo que não é seu!
As crianças pequenas serão o que os adultos do século XXI querem que elas sejam e de acordo com o figurino que adotam, urbanizado e globalizado.
Durante 26 anos, construímos “escolas debaixo da mangueira”. E a maior crítica que recebíamos era: “a escola “Sementinha“ funciona bem no interior, nas cidades pequenas…na roça. Vocês têm experiência em cidades grandes onde há muito trânsito, violência nas ruas, etc, etc? “
Esta é uma visão equivocada, uma crítica que nunca fez sentido para nós, pois trabalhamos com as crianças, sujeito e razão de nosso trabalho e não o lugar onde vivem. Assim, trabalhamos, tanto no sertão de Minas, como também na área industrial da grande São Paulo.
Por 8 anos (2000/2008) trabalhamos em Santo André, cidade industrial da Grande São Paulo, onde não havia nem mesmo mangueiras ou outras árvores nas ruas, mas havia crianças e, como as crianças do Vale do Jequitinhonha, precisavam de oportunidades para crescerem e se desenvolverem bem, como crianças e como cidadãos.
Aldeia Global
Acreditamos que os problemas que mais prejudicam a formação e educação das crianças pequenas são, na maioria das vezes, os mesmos:
– a negligência dos adultos,
– a falta de uma rede de afetos e cuidados,
– a crença que criança pequena não pensa, não deseja, não opina e não participa.
Na cidade e no campo, no urbano e no rural, eram (e ainda são) os mesmos problemas que afetam a vida e dignidade de nossas crianças pequenas.
Voltando a Francesco Tonucci no seu livro “Quando as crianças dizem: agora chega!”. Ele nos oferece uma alternativa, aprendida de uma criança de Mar del Plata, Argentina:
-…”eu queria duas praças perto de casa!
– Por que duas?
– Porque uma pode estragar”.
Acho que podíamos adotar esta bela idéia também para todos os adultos que cercam e interferem na vida e formação de todas as crianças pequenas: ter mais de uma pessoa responsável, porque ela pode “estragar”!
O ideal continua sendo um princípio que aprendemos com a comunidade de Namalima, no interior de Moçambique, na região da Nampula:
– “para cuidar (e educar) uma criança é necessária toda a aldeia!”
Por isso a vida que se oferece às crianças pequenas é única, una e indivisível. Não pode ser adiada, nem postergada. O futuro das crianças é o presente, o dia-a-dia dos cuidados e afetos. É o ser livre, educado e feliz, já! E não num futuro longínquo, incerto e não realizado, na maioria das vezes e para a maioria das crianças do mundo.
Portanto, seja ele urbano ou rural, grande ou pequeno, local ou global, mas seja, primeiramente uma “Aldeia-Criança” que se olhe e se construa “pelo lado cheio do copo” e formule suas políticas de cuidado, atenção e educação das crianças não pelo IDH, mas pelo IPDH (“Índice Potencial de Desenvolvimento Humano” – Tecnologia Social desenvolvida pelo CPCD, em 2000) que é a capacidade desta aldeia de produzir Acolhimento, Convivência, Aprendizagem e Oportunidade! AÇÃO!
Este compromisso com a “AÇÃO” só terá efeitos efetivos no dia que rompermos com as lógicas deterministas que desejam um “mundo plano” para pavimentar a economia e universalizar os mercados, padronizar o consumo e garantir o monopólio do conhecimento, dos valores e da Vida!
** Tião Rocha é antropólogo (por formação acadêmica),
educador popular (por opção política) e mineiro (por sorte).
Fundador e presidente do CPCD.